segunda-feira, 17 de abril de 2017

Lembranças

Vou contar uma história do meu velho. Vou contar uma história do seu Zé e das suas peripécias. E prometo que vou escrever e só vou sorrir porque tristeza não combinava com o meu pai. Quando chegar ao fim deste texto haverei de estar gargalhando com a lembrança que minha mente foi hoje buscar no passado.
Meu pai gostava muito de futebol. Colorado roxo, doente, fanático. Meu pai amava o seu Internacional. Amava tanto que uma vez, quando o Inter foi campeão gaúcho, colocou uma toalha que a gente tinha que era o emblema do time no capô do fusca e se foi rua do Comércio afora buzinando. Depois, estacionou o nosso fusca azul no barzinho do seu Delico (um gremista inveterado) e, enrolado na toalha do Inter entrou gritando: "Eu só vim comprar um cigarro!"
Dia de Gre-nal em casa era um dia sagrado. Às vezes, minha mãe fazia pipocas e a gente sentava no chão, meu irmão e eu, perto da cadeira de balanço dele e ficávamos passando aquela bacia cheia de pipocas para lá e cá. Às vezes só ia para lá, e nós dois ficávamos olhando ele comer as pipocas e xingar os jogadores. Em um domingo desses, ainda no primeiro tempo do jogo, meu pai enroscou a língua naquilo que antigamente se chamava "ponte". Acho que nem tem mais isso hoje...
Pois bem, no apuro de soltar a língua ele rasgou a miserável naquele ferro da ponte. E uma veia de debaixo da língua cortou e voou sangue para todo lado. Foi um Deus nos acuda! Eu berrava e meu irmão berrava porque me via berrar. E minha mãe já quase infartando querendo levar ele para o hospital a todo pano.... E o velho, cuspindo sangue na pia do banheiro, impassível, agarrou a toalha de rosto e se sentou de novo na sua cadeira de balanço.
"Zé, tu tem que ir pro hospital!" dizia minha mãe. E meu pai segurando a toalha embaixo do queixo olhou para ela e disse: " Depois do primeiro tempo! Não posso perder o jogo, porque se eu não assistir o Inter vai perder!" E ali ele ficou. Nada arredou ele da cadeira. Se o Inter ganhou ou perdeu o primeiro tempo do Gre-nal eu não lembro.
Lembro da minha mãe praticamente arrastando ele para dentro do bendito fusca azul. Lembro de mim e do meu irmão encarapitados no banco de trás e do nosso pai sangrando com a toalha de rosto na mão, toda suja, blasfemando porque não queria perder o jogo. E que fizessem o curativo ligeiro que ele não podia perder o Gre-nal!
Lembro da gente entrando no Hospital de Caridade em Ijuí e do médico plantonista olhando aquela cena bizarra com uma cara de apavoro e do meu pai rosnando "Ligeiro, ligeiro, que o Inter tá jogando!" Mas não foi "ligeiro, ligeiro" como ele queria não. Foi bem mais devagar porque ele levou pontos embaixo da língua, acho que uns 4 ou 5.
Não vimos o final do Gre-nal. Mas meu pai levou a gente no Correntão e comemos um X no prato que é coisa que só no sul você vê, acompanhado daquela coca-cola de garrafa de vidro. Ele e a minha mãe tomaram umas cervejas e depois voltamos para casa. E mesmo com o acidente foi um domingo feliz. Daqueles que você nunca mais esquece e que, com o passar dos anos e das águas pela ponte da memória, se tornam ainda mais belos.
Eu prometi que ia escrever esse texto sorrindo, meu velho, e de fato sorrindo estou. Tenho certeza de que você se lembraria desse feito e ainda poria a língua para fora para mostrar o sinal dos pontos, só ilustrando melhor a minha escrita. Esse ano, pai, eu termino de cumprir uma promessa que lhe fiz. Talvez a mais importante de todas. Nós três sabemos o que é: você, eu e o meu irmão.
Tenho certeza de que quando a hora chegar, você vai estar lá sentado junto com a gente. E vai estar sorrindo. E vai colocar a sua língua para fora e fazer caretas para nos fazer rir, como você fazia. Porque mesmo com todo o tempo passado, mesmo com toda a nossa caminhada, velho querido, ainda somos as mesmas crianças que achavam que o X no prato era o maior lanche do mundo e que a coca-cola de garrafa de vidro era a coisa mais fantástica.
Mesmo adultos, pai, ainda queremos subir no Oggi e ir para Chorão, naquele posto de gasolina comer Diamante Negro. Ainda queremos soltar pipa. Brincar com nosso estilingue. Jogar bola no gramado de casa, e vôlei tendo o muro como rede. Mesmo adultos queremos o seu abraço e o seu beijo, queremos que você volte a nos pegar no colo.
Esse ano, quando a hora chegar, eu sei que você vai estar lá. E um dia, quando nos reencontrarmos, quando eu for poeira entre as estrelas e puder me aproximar da estrela maior que é você, sei que você vai me olhar sorrindo. E vai me devolver o sorriso que faz 24 agostos, a vida sorrateiramente tirou de mim.
Te amo, meu velho. Te amo tanto e com uma força tão imensa que me chega a doer...

Por MarciaMedeiros

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